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LIVROS

A Celebração do Rei Lagarto
A Celebração do Rei Lagarto (Fronteira do Caos, 2013)

     Até as pedras da calçada parecem cumprimentá-la no momento em que os seus elegantes sapatos de salto alto tocam a sua empoeirada cor. Vergam-se à sua passagem como cachorros pedinchando doces ao seu dono. Jim provoca-me ao perguntar se eu serei capaz de a fazer reparar em mim. - Como esperas poder alcançar uma raridade destas que não parece dar tréguas a ninguém? - pergunta-me. Eu esboço-lhe apenas um murmúrio e enchendo-me de coragem desato em passo acelerado para só parar na frente daquela mulher. - Olá, olá, olá. - Sou surpreendido e Jim também. Ela cedeu, parou e, primeiro, sorriu, depois não aguentando mais o esforço que já vinha fazendo desde que encetámos aquela perseguição, riu e riu e riu mais ainda. Parecia que não queria deixar de rir. Jim, que a princípio até terá achado alguma graça a toda aquela situação, fechou o rosto. A reacção tida por aquela mulher, depois de criada tão elevada expectativa, era para ele considerada demasiado vulgar. Jim tem destas coisas, raramente se dando por satisfeito com as situações mais naturais.

 

Céu Negro
Céu Negro (Fronteira do Caos, 2008)

     O que lhe passava pela cabeça era um emaranhado de imagens e emoções que não conseguia controlar e, para as quais, tão pouco, encontrar explicação. Ainda assim, algumas dessas coisas, eram verdadeiramente revigorantes. Não tentava sequer perceber, e mesmo que tentasse não conseguiria. Tudo o que se estava a passar não dependia de si. Era algo muito superior e que os seus sentidos não conseguiam dominar. Estava envolvido num intenso nevoeiro. Uma terrível obscuridade.

     Sons, apenas sons, todos muito distantes…

     Jorge Romão tinha a real sensação que, pela primeira vez na vida, estava a escutar o barulho do horror, vindo de diferentes lugares e várias direcções. Experimentava a horrível impressão de ouvir um constante chamamento. Conseguia ouvir gritos mudos a chamar por si. Sentia, não sabe ao certo como, que alguém estava à sua espera. Não o deixavam repousar. Até parecia que toda a vida lhe estava a escoar por entre os dedos. Conseguia ver o Mundo, inteiro, todo ao mesmo tempo.

 

A Promessa
A Promessa (Fronteira do Caos, 2010)

     Estava a caminho dos nove anos e os outros miúdos já sentiam medo só de se aproximarem dele. Ninguém percebeu ao certo como as coisas começaram. Até então, o miúdo não tinha evidenciado nenhum tipo de situação mais conflituosa. Até era uma criança com quem os adultos gostavam de conversar. Em tudo o que dizia revelava uma esperteza raramente vista naquelas idades. Com o afastamento dos outros, Tóino começou a ser visto sempre sozinho, isolado de tudo e todos. Muitas eram as vezes que era apanhado a olhar para o céu. Um olhar perdido no infinito. Costumava ficar assim, horas e horas, muitas vezes até depois do anoitecer. De vez em quando avistava um avião lá no cimo e seguia-o com o olhar. Depois de o avião desaparecer no horizonte costumava passar a meia hora seguinte a dar as mais altas gargalhadas jamais ouvidas em São Vicente da Beira. As pessoas não achavam graça.

 

Segredos
Segredos (Fronteira do Caos, 2009)

     Não sei ao certo quanto tempo mais vou resistir ao sono e ao cansaço. Só sei que preciso deste instante, e do último cigarro, e desta escuridão, e do silêncio que de tão intenso se faz ouvir.

     O cigarro. O queimar. O sentir.

     Um pulo. O cigarro consumido pelo ar queimou-me os dedos. Acendo a luz e observo a cinza que embora tombada no chão parecia sólida. Em mim uma sensação esquisita da falta de noção do tempo. Parece até que passaram horas, mas não. Só a estranha impressão de ter sonhado. Muito. Ter estado em tantos lados e com tanta gente. Ter vivido situações estranhas, irreais, incompreensíveis. Tudo num flash.

     Os sonhos, às vezes, são mesmo estúpidos.

     Acho que vou morrer.

 

Amor Meu Grande Amor
Amor Meu Grande Amor (Fonteira do Caos, 2012)

   Não passou muito tempo até que Miriam surgisse junto à porta de entrada para gestualmente lhe fazer um convite a entrar.

     Ele sorriu ao mesmo tempo que se encaminhou em direcção à casa mas deteve-se à porta quando a viu a dançar ao som de uma música que não se escutava. Ela rodopiou até encontrar os seus braços. Santiago apertou-a, ela mexeu a cintura de encontro a ele roçando-se e provocando-o. As mãos não paravam de o acariciar. Os seus lábios buscaram os dele e as línguas acabaram por se tocar como se toda a vida tivessem andado em busca uma da outra. Entregaram-se àquele beijo com uma loucura quase sôfrega. Ofegaram. Começaram a transpirar. Até que, já solta, Miriam recuou vagarosamente e, acenando-lhe lentamente, entrou em casa e fechou a porta, deixando-o do lado de fora.

Pedras Soltas

Poemas

(Ilustrações de Ana Sofia Neves)

Conversas (Des)Fiadas e Assim...
Quando Os Dias Se Fizerem Frios
Pedras Soltas (Fronteira do Caos, 2014)

3.13

 

Algo em mim morre a cada dia;

o tempo que me arrebata,

o silêncio,

a saúde, o amor, os sonhos e as alegrias.

Depois evoco as minhas muitas ilusões

e penso: “não, eu não”. Serei um tolo

por pensar que a respiração mata

o meu antigo eu que suportou tanto?

Às vezes sinto-me um estranho aos meus próprios olhos,

um sonhador, um eterno jovem

para quem tudo ontem eram flores e hoje são cardos.

E continuo a espantar-me,

porque cada vez mais próximo da morte, imagino

que já morri muitas vezes na vida.

Conversas (Des)Fiadas e Assim... (Bookmundo, 2020)

     Despertar

     Acordo e a primeira informação que o cérebro dá ao corpo é que deixe o braço descair para o lado e que a minha mão ainda adormecida te procure cega pela cama, mas nela sinto apenas o frio dos lençóis.

     E sinto-me a boiar num mar desgostoso e transtornado por acordar e não te pressentir contemplando-me num olhar atento e ansioso para me saudares com esses teus olhos cor de mel.

     Aquele teu “bom dia” que espero e com que sonho e aquele olhar carinhoso e meloso que me lembra uma bela paisagem alentejana no fim de uma tarde de Verão.

  Ainda não sei se quero abrir os olhos ou voltar a envolver-me por entre os lençóis, aconchegar-me e continuar a flutuar pelos meus sonhos e imaginar como seria se estivesses aqui.

Quando Os Dias Se Fizerem Frios (Bookmundo, 2021)

     Quando os cabelos da cor da neve dominarem a tua face e os dias se fizerem frios porque a gélida solidão será a única presença constante a teu lado quando os dias se fizerem de insistente saudade, tu vais lembrar as tardes quentes, de quando levavas a passear os pequenos e havia risos de alegria, papéis, rebuçados e pipocas espalhadas pelo carro. Recordarás as brincadeiras deles, de quando usavam a mangueira do jardim para se molharem uns aos outros em vez de regarem as árvores. E a tua voz a recomendar menos confusão, mais economia de água, de energia eléctrica. Recordarás aquelas mãos pequenas que mexiam na tua orelha enquanto os olhos se tentavam fechar entregando-se ao sono. O urso de peluche de olhos grandes largado no banco de trás do carro que te acompanhava regularmente até ao trabalho. O mesmo que ficava ali a aguardar o regresso do dono no fim do dia. Lembrarás as vozes que perguntavam insistentemente: «Pegas-me ao colo? Não estou a ver nada daqui. Sou muito pequeno.» «Levas-me ao colo? Estou cansado.» «Gostas de mim?» E os lanches nas tardes de fim-de-semana, as visitas inesperadas, as festas nos aniversários, as cartas que ainda iam chegando, as viagens com os amigos, os amores, os carinhos, as lágrimas de emoção e contentamento.

     Tu vais lembrar.

   Mais tarde ou mais cedo tudo passará pelo caleidoscópio das memórias trazendo-nos ao coração ternura e saudade.

10 em 20

10 em 20 (Bookmundo, 2023)

uma breve nota do autor:

 

não sou especialista da escrita e muito menos da fotografia,

tenho sido, simplesmente, um curioso com boa vontade e muitos falhanços,

ainda assim não quis deixar passar em claro o vigésimo ano após a edição do primeiro livro,

daí a celebração

que justifica este “redondo” décimo livro.

As Portas ou a morte de um mito

As Portas ou a morte de um mito (Garrido Editores, 2003)

     Acordei de repente com a sensação de ter ouvido o barulho de uma porta a fechar. Ainda meio a dormir, abri ligeiramente e com alguma dificuldade um dos olhos para ver o que se passava. Talvez fosse uma das mulheres que faz a limpeza dos quartos, mas não tenho a certeza. Lembrei-me que a porta deveria continuar apenas no trinco. Não me recordo de alguém a ter fechado à chave.

   A claridade vinda da única janela existente dominava já por completo toda aquela assoalhada que tresandava a sexo. Onde me encontro, deitado entre duas suecas louras de corpos fascinantes completamente desnudas, não consigo sequer imaginar que horas poderão ser. A única coisa que sei é que já nasciam os primeiros raios de sol quando Agnetha, Anni e eu caímos profundamente no sono, extenuados depois de uma louca madrugada com muito sexo à mistura.

Indisponível
SEM PANTUFAS nos 50 anos de ABRIL

SEM PANTUFAS nos 50 anos de ABRIL (Bookmundo, 2024)

Ando farto

 

Estou farto de fascistas patrocinados

por tv’s e jornais de escândalos,

a vomitar verborreia encomendada

nas antenas abertas e fóruns radiofónicos

que só a democracia lhes permite usar.

A dispararem alarvidades com canos serrados

que, a serem usadas, só feririam de morte

a própria,

em benefício de duas ou três bestas

que só querem sugar o sangue

dos pobres de espírito

de quem eles se aproveitam.

Diz-me lá, oh desventurado, onde é que cagas,

só para sentir se o teu cheiro é diferente

do meu?

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